ELÚLTIMO 92
1-5 - 92-06-01-vv-ce elee-vv-ce – versículos prosaicos - 12701 caracteres = 4766 caracteres ele-1-discurso em «ele» para ac ficcionar - estrela de prata
Lisboa, 1/Junho/1992
AC IN EXTREMIS - O SEGREDO DAS SIGLAS INDISCRETAS
# TESTAMENTO AC - 1ª LINHA
# FICÇÕES (ESBOÇOS)
Assaltava-o a tremenda angústia de, após o seu triste passamento (desfalecimento), se ver reduzido post mortem ao triste silenciamento a que estivera sujeito durante uma longa, triste e tortuosa vida de escritor comprovadamente falhado.
Para as ficcões, então, um desastre. Que iria ser do volumoso espólio literário que com tanto carinho organizara até ao milímetro, durante o Ano Sabático que a Universidade Clássica tão generosamente lhe facultara?
Para isso servem as faculdades, aliás, para facultar.
Nesse ano de trabalho intensivo, como há muitos anos não tivera, ele conseguira de facto pôr em dia a escrita que andara em atraso durante toda a sua tortuosa vida de frustrado profissional, toda a vida em uma profissão que fundamentalmente detestava, com o inerente stress , como às costas teve sempre o fardo do espólio, dos manuscritos, dos diários, dos esboços de ficções, dos poemas, dos artigos polémicos, dos ensaios (= subversivos da ordem estabelecida), das malditas intuições que sabia ferirem de morte o sistema de morte que vive de ir matando os ecossistemas.
Mas a parte positiva da sua obra, que iria ser dela? Essa é que o preocupava, aquela que se destinava a ajudar, por pouco que fosse, as novas gerações, a dar um pequeno contributo para a construção da ponte entre Kali-Yuga e Aquário, iria também morrer como era justo que morresse a parte negativa?
Afinal, a Crónica da Entropia - era Ele o primeiro a reconhecer - ele até acharia karmicamente justo que morresse, mas a parte desentrópica (neologismo que ele teimou em inventar para substituir Neguentropia, a parte da Esperança, a parte não-maldita (Georges Bataille), a das tecnologias do Amor e da Vida , iria ter o mesmo destino?
E os seus poemas? Teria sido ele alguma vez poeta? Mereceria sobreviver? Afinal, quantos como ele, ou melhores do que Ele, não teriam desaparecido no Vórtice do anonimato e mercê da triagem que o marketing editorial tão fabulosamente fabrica? Mas ele recusava-se, como Unamuno, a morrer...
Ele recusava-se, com todas as forças da sua alma, a deixar-se submergir nesse vórtice e nesse anonimato. Lutava desesperadamente contra a sua própria Entropia
Com este ingénuo truque, Ele procuraria não morrer de todo para a Posteridade e fazer com que o seu espólio valesse comercialmente alguma coisa, tanto pelo menos quanto o investimento feito nele em centenas de horas de trabalho forçado à máquina de escrever primeiro e ao computador depois.
Célebre ele nunca iria ser, escrevera coisas demais (a quantidade, aliás, diluía a qualidade, bem o sabia) e demasiado ofensivas dos bons costumes contra o ambiente.
A palavra-chave de Etienne Guillé - «armadilhado» - empolgava-o e sonhava deixar a sua morte «armadilhada».
Ainda a tempo e plagiando-se a si próprio, era urgente ele descobrir que filme de Robert Bresson, visto no grande anfiteatro da Fundação Gulbenkian, glosava também o tema, embora de modo um pouco diferente: afinal o personagem desse filme apenas conseguia que um seu inimigo acabasse por ficar com o ónus do seu suicídio, não para o castigar mas para se isentar a ele desse Ónus Kármico...
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2958 caracteres ele-2-diario-92
Lisboa, 5/6/1992
A benefício de Inventário
Elúltimo, toureador afamado nos seus tempos de juventude, Elúltimo considerava um dever cívico realizar essas memórias, esse seu ambicioso projecto de vários volumes - quase enciclopédico, diga-se de passagem. Nem a alma se lhe aproveitaria! Mas - como sempre ouviu dizer ao Pai Fernando - a Alma é a Pele do demónio visto do Avesso e com o demónio ele sempre mantivera as mais doces relações de coexistência pacífica, nem sim nem sopas, antes pelo contrário, tal como Teleman.
Nunca compreendera, aliás, porque a interrupção de uma suite de flauta, em pleno concerto no Jardim dos Plátanos, lhe transmitia aquela sensação fugidia e terrível de Assincronia. Com a Lista Rosa de Nomes próprios Elúltimo exorcismaria os seus bons e maus demónios, em harmonia total com a ordem do Universo - mérito que não deixaria de lhe ser reconhecido pela Posteridade, caso a Posteridade, pelo menos uma vez na Vida, decidisse ser justa. O peso-pesadelo que o mantivera tolhido, toda a vida, tanto como o Reumático articular no Ombro Esquerdo, iria agora tornar-se menos peso e Pesadelo quantum satis, só porque o exorcismava via inventário.
Porque não havia de deixar, o preto no branco, todos os touros que ele toureara, ao longo de anos e anos, em que a única compensação kármica que recebera foram algumas estocadas de bandarilha na ilharga direita – a mais vulnerável desde o tempo dos egípcios - e mesmo de esguelha?
«Vingança póstuma» não seria, aliás, a palavra mais justa. «Fraternidade fratricida» era talvez a expressão mais correcta e de que ele deixara copyright exarado em Notário. Ou a de «assembleia de freguesia» com os vizinhos todos a assistir com a imensa ternura que há nessa palavra «vizinho».
Ou mesmo a de «plenário geral», como os deputados faziam na sua espinhosa missão de representar o povo naquele hemiciclo mágico .
Equivalia, para ele, a destapar a «caixa de Pandora» e nunca conhecera de perto - verdade seja - a dita Pandora mas calculava-a democrática, pluralista.
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2282 caracteres ele-3-diario-92
Lisboa, 5/6/1992
CARTA A 545 SERES HUMANOS
Não sei se estão mortos, se estão vivos, se assim-assim, se em banho maria ou em stand by
Não sei se me odeiam, se me consideram
Não sei se o meu nome lhes diz alguma coisa ou se lhes é total e completamente indiferente
Não sei se me devem alguma coisa ou se sou eu que lhes devo ou se estamos quites
Não sei se fumariam comigo o Cachimbo da Paz e enterrariam o Machado de Guerra
Se quereriam aprender em uma aula ampla e arejada as lições de budismo Zen que toda a vida me ensinaram
Não sei se alguma vez ouviram falar e riram dos meus ensaios de karma yoga
Não sei se alguma vez sonharam alto comigo e lhes apareci à beira do Precipício com uma bandeira vermelha ondulando ao vento
Não sei se irão ao meu funeral ou se preferirão ir ao meu casamento e baptismo, ou às minhas bodas de prata
Ou se já leram (e recitam em voz alta) o Livro dos Mortos
Ou se teriam, como eu, a Coragem de acreditar em tudo sem ter Fé em nada, e muito menos a inabalável Fé em deus que move montanhas
Não sei o que os espera, o que me espera, se terão sorte, se vão ter sorte, se lhes saiu a taluda no domingo passado, se se compadecem dos pobres e dos aflitos, se dão esmola em dias santos de guarda
Se capturam Borboletas no auge da Confusão dos Narizes
Se estariam dispostos a dar a vida pela vida e a organizar comigo um «meeting» de Primavera
um Dicionário das Expressões Intraduzíveis em todas as línguas
um único Léxico com a única língua universal que não existe
Não sei que fantasias povoam os seus dias ou se costumam inventar corpos de mulheres atrás das grades
ou que temas vergonhosos e vagabundos têm em casa
Não sei por onde andam perdidos farejando a Gota de felicidade a que todos em geral e cada um em particular tem direito
Não sei o que será deles não sei o que será de mim
mas quero saudá-los com a mais absoluta e certeira e terna e cândida das simpatias
Quero dizer-lhes, irmãos por um minuto da minha vida, quando nos iremos encontrar e onde
para um papo mais demorado?
Em que jardim da Babilónia ou em que banco do Jardim da Estrela?
[ ...]
[ grelha aberta]
+
2633 caracteres -ele-4-diario92
# ELÚLTIMO
Lisboa, 11.7.1992
Cada vez pior da neurose, Ele estava portanto, cada vez mais lúcido. Era como se visse o mundo à radiografia. Via-o por dentro e as montagens hoje tão frequentes na vida política e mediática, não lhe escapava uma. O que, evidentemente, piorava a sua neurose. Mas piorar a neurose significava ficar ainda mais lúcido, até ao milímetro, como agora se dizia.
«Tudo é espectáculo» . E também isso Ele via agora com nitidez de alta definição. Sofria a dobrar. Em vez de caminhar para a adequação ao real inventado, ele caminhava para o real da realidade profunda, o de trás da máscara e dos fingimentos e das fantasmagorias.
Regressar ao racionalismo de António Sérgio é um anacronismo imperdoável e Ele - o Último - sentia-o melhor do que ninguém, pois endeusar António Sérgio na sua juventude e com ele se viciara na honestidade mental e intelectual, no vício das ideias claras, cartesianas.
Mas o Mundo, hoje, era exactamente o oposto disso. Era pantanoso e apocalíptico. Era turvo, castanho cinza, ambíguo, contraditório, feito de irreais ideais e de idealismos irracionais, feito de «aggiornamentos» com Belzebu e de santas alianças as mais insólitas.
***
Lisboa, 1/Junho/1992
AC IN EXTREMIS - O SEGREDO DAS SIGLAS INDISCRETAS
# TESTAMENTO AC - 1ª LINHA
# FICÇÕES (ESBOÇOS)
Assaltava-o a tremenda angústia de, após o seu triste passamento (desfalecimento), se ver reduzido post mortem ao triste silenciamento a que estivera sujeito durante uma longa, triste e tortuosa vida de escritor comprovadamente falhado.
Para as ficcões, então, um desastre. Que iria ser do volumoso espólio literário que com tanto carinho organizara até ao milímetro, durante o Ano Sabático que a Universidade Clássica tão generosamente lhe facultara?
Para isso servem as faculdades, aliás, para facultar.
Nesse ano de trabalho intensivo, como há muitos anos não tivera, ele conseguira de facto pôr em dia a escrita que andara em atraso durante toda a sua tortuosa vida de frustrado profissional, toda a vida em uma profissão que fundamentalmente detestava, com o inerente stress , como às costas teve sempre o fardo do espólio, dos manuscritos, dos diários, dos esboços de ficções, dos poemas, dos artigos polémicos, dos ensaios (= subversivos da ordem estabelecida), das malditas intuições que sabia ferirem de morte o sistema de morte que vive de ir matando os ecossistemas.
Mas a parte positiva da sua obra, que iria ser dela? Essa é que o preocupava, aquela que se destinava a ajudar, por pouco que fosse, as novas gerações, a dar um pequeno contributo para a construção da ponte entre Kali-Yuga e Aquário, iria também morrer como era justo que morresse a parte negativa?
Afinal, a Crónica da Entropia - era Ele o primeiro a reconhecer - ele até acharia karmicamente justo que morresse, mas a parte desentrópica (neologismo que ele teimou em inventar para substituir Neguentropia, a parte da Esperança, a parte não-maldita (Georges Bataille), a das tecnologias do Amor e da Vida , iria ter o mesmo destino?
E os seus poemas? Teria sido ele alguma vez poeta? Mereceria sobreviver? Afinal, quantos como ele, ou melhores do que Ele, não teriam desaparecido no Vórtice do anonimato e mercê da triagem que o marketing editorial tão fabulosamente fabrica? Mas ele recusava-se, como Unamuno, a morrer...
Ele recusava-se, com todas as forças da sua alma, a deixar-se submergir nesse vórtice e nesse anonimato. Lutava desesperadamente contra a sua própria Entropia
Com este ingénuo truque, Ele procuraria não morrer de todo para a Posteridade e fazer com que o seu espólio valesse comercialmente alguma coisa, tanto pelo menos quanto o investimento feito nele em centenas de horas de trabalho forçado à máquina de escrever primeiro e ao computador depois.
Célebre ele nunca iria ser, escrevera coisas demais (a quantidade, aliás, diluía a qualidade, bem o sabia) e demasiado ofensivas dos bons costumes contra o ambiente.
A palavra-chave de Etienne Guillé - «armadilhado» - empolgava-o e sonhava deixar a sua morte «armadilhada».
Ainda a tempo e plagiando-se a si próprio, era urgente ele descobrir que filme de Robert Bresson, visto no grande anfiteatro da Fundação Gulbenkian, glosava também o tema, embora de modo um pouco diferente: afinal o personagem desse filme apenas conseguia que um seu inimigo acabasse por ficar com o ónus do seu suicídio, não para o castigar mas para se isentar a ele desse Ónus Kármico...
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2958 caracteres ele-2-diario-92
Lisboa, 5/6/1992
A benefício de Inventário
Elúltimo, toureador afamado nos seus tempos de juventude, Elúltimo considerava um dever cívico realizar essas memórias, esse seu ambicioso projecto de vários volumes - quase enciclopédico, diga-se de passagem. Nem a alma se lhe aproveitaria! Mas - como sempre ouviu dizer ao Pai Fernando - a Alma é a Pele do demónio visto do Avesso e com o demónio ele sempre mantivera as mais doces relações de coexistência pacífica, nem sim nem sopas, antes pelo contrário, tal como Teleman.
Nunca compreendera, aliás, porque a interrupção de uma suite de flauta, em pleno concerto no Jardim dos Plátanos, lhe transmitia aquela sensação fugidia e terrível de Assincronia. Com a Lista Rosa de Nomes próprios Elúltimo exorcismaria os seus bons e maus demónios, em harmonia total com a ordem do Universo - mérito que não deixaria de lhe ser reconhecido pela Posteridade, caso a Posteridade, pelo menos uma vez na Vida, decidisse ser justa. O peso-pesadelo que o mantivera tolhido, toda a vida, tanto como o Reumático articular no Ombro Esquerdo, iria agora tornar-se menos peso e Pesadelo quantum satis, só porque o exorcismava via inventário.
Porque não havia de deixar, o preto no branco, todos os touros que ele toureara, ao longo de anos e anos, em que a única compensação kármica que recebera foram algumas estocadas de bandarilha na ilharga direita – a mais vulnerável desde o tempo dos egípcios - e mesmo de esguelha?
«Vingança póstuma» não seria, aliás, a palavra mais justa. «Fraternidade fratricida» era talvez a expressão mais correcta e de que ele deixara copyright exarado em Notário. Ou a de «assembleia de freguesia» com os vizinhos todos a assistir com a imensa ternura que há nessa palavra «vizinho».
Ou mesmo a de «plenário geral», como os deputados faziam na sua espinhosa missão de representar o povo naquele hemiciclo mágico .
Equivalia, para ele, a destapar a «caixa de Pandora» e nunca conhecera de perto - verdade seja - a dita Pandora mas calculava-a democrática, pluralista.
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Lisboa, 5/6/1992
CARTA A 545 SERES HUMANOS
Não sei se estão mortos, se estão vivos, se assim-assim, se em banho maria ou em stand by
Não sei se me odeiam, se me consideram
Não sei se o meu nome lhes diz alguma coisa ou se lhes é total e completamente indiferente
Não sei se me devem alguma coisa ou se sou eu que lhes devo ou se estamos quites
Não sei se fumariam comigo o Cachimbo da Paz e enterrariam o Machado de Guerra
Se quereriam aprender em uma aula ampla e arejada as lições de budismo Zen que toda a vida me ensinaram
Não sei se alguma vez ouviram falar e riram dos meus ensaios de karma yoga
Não sei se alguma vez sonharam alto comigo e lhes apareci à beira do Precipício com uma bandeira vermelha ondulando ao vento
Não sei se irão ao meu funeral ou se preferirão ir ao meu casamento e baptismo, ou às minhas bodas de prata
Ou se já leram (e recitam em voz alta) o Livro dos Mortos
Ou se teriam, como eu, a Coragem de acreditar em tudo sem ter Fé em nada, e muito menos a inabalável Fé em deus que move montanhas
Não sei o que os espera, o que me espera, se terão sorte, se vão ter sorte, se lhes saiu a taluda no domingo passado, se se compadecem dos pobres e dos aflitos, se dão esmola em dias santos de guarda
Se capturam Borboletas no auge da Confusão dos Narizes
Se estariam dispostos a dar a vida pela vida e a organizar comigo um «meeting» de Primavera
um Dicionário das Expressões Intraduzíveis em todas as línguas
um único Léxico com a única língua universal que não existe
Não sei que fantasias povoam os seus dias ou se costumam inventar corpos de mulheres atrás das grades
ou que temas vergonhosos e vagabundos têm em casa
Não sei por onde andam perdidos farejando a Gota de felicidade a que todos em geral e cada um em particular tem direito
Não sei o que será deles não sei o que será de mim
mas quero saudá-los com a mais absoluta e certeira e terna e cândida das simpatias
Quero dizer-lhes, irmãos por um minuto da minha vida, quando nos iremos encontrar e onde
para um papo mais demorado?
Em que jardim da Babilónia ou em que banco do Jardim da Estrela?
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[ grelha aberta]
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Lisboa, 11.7.1992
Cada vez pior da neurose, Ele estava portanto, cada vez mais lúcido. Era como se visse o mundo à radiografia. Via-o por dentro e as montagens hoje tão frequentes na vida política e mediática, não lhe escapava uma. O que, evidentemente, piorava a sua neurose. Mas piorar a neurose significava ficar ainda mais lúcido, até ao milímetro, como agora se dizia.
«Tudo é espectáculo» . E também isso Ele via agora com nitidez de alta definição. Sofria a dobrar. Em vez de caminhar para a adequação ao real inventado, ele caminhava para o real da realidade profunda, o de trás da máscara e dos fingimentos e das fantasmagorias.
Regressar ao racionalismo de António Sérgio é um anacronismo imperdoável e Ele - o Último - sentia-o melhor do que ninguém, pois endeusar António Sérgio na sua juventude e com ele se viciara na honestidade mental e intelectual, no vício das ideias claras, cartesianas.
Mas o Mundo, hoje, era exactamente o oposto disso. Era pantanoso e apocalíptico. Era turvo, castanho cinza, ambíguo, contraditório, feito de irreais ideais e de idealismos irracionais, feito de «aggiornamentos» com Belzebu e de santas alianças as mais insólitas.
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